quinta-feira, 18 de março de 2010

À SOMBRA DO VIADUTO

Não só para os carros servem os viadutos.
Outro dia, ao pôr em prática minha porção atlética, parei à sombra de um viaduto para dar uma trégua ao peito e refazer-me da caminhada, um exercício que me recomendam o médico e a vontade de continuar bem e ainda por um bom tempo nesta dimensão.
A sombra é sempre um bom lugar pra gente reabastecer os pulmões e emprestar pernas ao pensamento - pernas e asas. Servem as asas para nos ocuparem de coisas que estão distantes, das divagações, mas para as coisas que estão ao alcance de nossos olhos as pernas bastam. E este foi o caso.
Dei-me conta de que tinha concorrentes à atmosfera daquele espaço sob o viaduto. Mas percebi, também, que não se tratava de figuras tais e quais eu e aqueles que comigo bem ou minimamente se postam ao sabor das etiquetas sociais. Até esqueci as razões por que parei ali e me pus a fazer uma reflexão sobre o quadro com que me deparei. Tratar-se-ia de pessoas normais, vistos à luz da ciência que nos codifica e esquadrinha? Muitos detalhes diziam que sim, pois tinham cabeça, tronco e membros do jeitinho que eu, respeitadas, é claro, as diferenças com que a Natureza nos distingue uns dos outros. Mas as roupas eram rotas, os pés estavam descalços e os cabelos, desalinhados. Quem eram? Minha curiosidade aguçou-se. Às favas a apuração física! – pensei - e o que passou a me interessar mesmo foi fazer a ficha biológica daquele modelo de ... digamos, por enquanto, modelo de gente. Como eu disse, cabeça, tronco e membros tinham. Deu pra reparar nas “crianças” que esboçavam feições bonitas, uma observação que fiz com meus olhos de reserva. Nossos olhos de reserva são aqueles que tomam emprestados sabão e pente, roupas e sapatos, amor e carinho, respeito e dignidade, e metamorfoseiam as figuras observadas, colocam-nas noutra dimensão, fazem-nas cidadãs. E aí fiquei pensando, não com meus botões, pois estava de calção e camiseta, mas com as asas atrevidas de meu imaginário: Considerando a possibilidade de serem aquelas crianças unidades de nossa raça e Pátria, feitas à nossa imagem e semelhança, contadas no último senso, por que estavam aqui? Sim, porque isto é um viaduto, uma obra da engenharia para resolver a questão do trânsito, uma armação de concreto feita para ligar um ponto a outro, mas estes “seres” me parecem que o tomavam por casa, residência, lar... como morada, vá. Mas, se este é mesmo o caso, cadê as camas, a geladeira, o fogão, estes elementos básicos de nossos espaços domésticos? Cadê o fogão para cozer os alimentos, a geladeira para conservar os perecíveis, as camas para dormir e... e aí questionei: como teriam sido feitos estes pequeninos? O engenho deve ter sido o mesmo, a arte, quase... mas, e o cenário? No escurinho do cinema, duvido! Outra coisa: as demais necessidades fisiológicas, onde têm sido satisfeitas, elas que são comuns, imprescindíveis, inadiáveis e privativas? Das duas uma: Ou estes seres não são gente como a gente, ou são exageradamente esquisitos. Se, ao nosso modo, não moram, não amam, não se alimentam nem se cuidam, com certeza também não se educam, não têm assistência médica, não sonham, etc. Ah!, trabalho também não devem ter.Talvez não tenham nem mesmo esperança.
Mas será que esse viver estranho, miserável, desumano, perverso, é por opção, porque querem ser diferentes, por desvio de caráter, por “parafusos frouxos”, ou é resultado da má distribuição de renda que põe muitos sob a linha da pobreza, aqui chamada viaduto, e a uns poucos deita no berço esplêndido que a política do “farinha pouca, meu pirão primeiro” beija e balança? Ou... bem, agora me lembro que é hora de voltar pra casa, pois o peito já tenho refeito e não seria inteligente de minha parte desmassagear meu ego com essas coisinhas miúdas do cotidiano. “... Dos filhos deste solo és Mãe Gentil...” Que hino lindo!

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