segunda-feira, 28 de março de 2011

LITERALMENTE DE BOCA ABERTA

A cadeira até que é confortável. Dá para deitar, esticar, alongar a coluna, daria até para dormir, se fosse aquele um lugar para sonhar.
Começam os preparativos. Ouve-se o tilintar dos aparelhos que pouco a pouco vão se juntando ali diante de você, que acompanha com voracidade cada movimento e cada uma daquelas coisinhas que ele vai pondo e sem demora você ver um “arsenal”. A secretária te prepara. Delicadamente pendura em teu pescoço um delicado lenço e gentilmente dá em tuas mãos um simples guardanapo. Não se iluda. Naquele guardanapinho aparentemente inocente, está implícita uma ordem terrível: TIRE ESSE BATOM! E aí você desmonta. Que mulher nesse mundo suporta ficar sem batom diante de um homem? Ainda mais sendo ele um estranho e muiiito pior, se ele for bonito, o que é o caso da maioria dos dentistas. Você olha para um lado, olha para outro, suspira, mexe-se na cadeira, dá uma olhadela de soslaio para ver se Ele está te olhando (e quase sempre está) aí você treme e sem opção, lá se vai o seu batom! Você começa a se sentir desnuda. E lá vem Ele finalmente, com a pavorosa frase: abra a boca! Teu coração dispara. Você engole seco (porque aí já nem saliva você tem mais). E com aquele espelhinho mágico (mais para a Madrasta do que para a Branca de Neve), Ele vai revelando tudo: uma cárie ali, outra aqui em cima, umas placas acolá, uma gengiva inflamada aqui no canto e assim vai ditando a tua sentença. E você ali com a boca escancarada feito um jacaré (só que neste caso, você é a presa), totalmente entregue, indefesa, constrangida, se sentindo horrorosa. Como assim? Ora, como assim! O cara está vendo até a tua alma através da tua boca que não tem mais para onde se abrir e você sabe que logo em seguida virá a tortura pior: O tal aparelhinho pavoroso. Esse mesmo, aquele do Tiiiiiiiiiiiiiiiiiiii, da pontinha fina, que vai perfurando o teu dente como o dente de uma serpente e te fazendo arrepiar cada pelinho do teu corpo. E aí você está “ferrada”. O coração dispara outra vez, você sua frio, agarra-se desesperadamente aos braços da cadeira como se fosse atravessar em vôo livre, uma zona de terrível turbulência. E aí o Cara, talvez até com boa intenção, acredito, começa a conversar contigo. Pura covardia. Já que você, naquela situação, na melhor das hipóteses, no máximo poderá guturalmente sonorizar algumas onomatopéias: ãn, ummm anrrãn, unrrum ou quando muito, expressar um gesto de dor ou incômodo. E a coisa segue. Mete um tubinho aqui, espeta uma argola ali, num dente um pendurucalho, noutro, outra coisa dolorida para separar um dente do outro, enfia uma argola que aperta o dente, põe lá o sugador (esse sei do nome, talvez porque ele seja o mais calminho de todos) e tua boca vai estufando feito o bucho de um sapo cururu, cheia de coisa e você ali, imóvel, tesa feito mármore, se sentindo um monstro enquanto tua boca vai se ressecando cada vez mais e aí ficas muito constrangida, morrendo de vergonha Dele, com a sensação de estar muito, mas muito feia. Tenta passar a língua para umedecer os lábios, mas é inútil. Você nem sabe direito onde estão teus lábios.
E os olhos? Não se sabe o que fazer com eles. Não dá para encarar o cara; fitar os olhos dele, nem pensar. Seria ainda pior. As luzes sobre você são muitas. Oito, nove, já contei dez. Aí você não tem alternativa. Para quem consegue, o melhor seria fechá-los e tentar pensar em alguma coisa agradável; para outros, como eu, só resta fixar na bendita luz que te flecha a cara, aquela do protetorzinho de acrílico. E você ainda terá muita sorte se o acrílico que a envolve, estiver limpinho, transparente, porque em alguns casos, dá repulsa de olhar. Então você varia: ora olha para a luz grande do teto, ora para as pequeninas em volta dela, ora para a janela (quando tem), cuja paisagem é quase sempre nada, quando muito uma parede branca de algum prédio do outro lado da rua, e vai tentando variar de tudo, mas teu destino final é mesmo a luzinha do acrílico.
Mil coisas passam pela tua cabeça: - até que ele é legal. Ele é bonito. Poderia ser pior. Ele poderia ser um cara feio de mãos e dedos gordos, que encheriam ainda mais a tua boca. Ele poderia cheirar a catinga, grrr;...
E você vai tentando se ajudar, se equilibrando da maneira que pode.
Faço uma vaga idéia de quanto tempo dura cada sessão, mas independente do tempo cronológico, tenho sempre a sensação de que várias vidas se passaram ali. E quando finalmente penso que acabou, aí vem a terrível ordem: “marque o retorno com a secretária...”

M. M.
Depois dessa, só ouvindo Ave Maria: