segunda-feira, 15 de novembro de 2010

EU E O LOBO-GUARÁ

Nos meus tempos de matuto, embrenhado nas matas das terras de meu pai, ouvi muitas estórias, narradas aqui e ali pelos poucos visinhos, nas exposições domingueiras que faziam de suas crenças e de suas memórias.
Lembro que me falaram do lobo-guará, descrito pela gente daquele lugar como um animal muito ligeiro e feroz. Diziam que, de tão rápido, quando o imaginávamos em nossa frente ele estava às nossas costas, e quando às nossas costas o supúnhamos, o bicho já nos encarava de frente. Era um deus-nos-acuda, sem chance para aquele que lhe caísse às garras! Na ocupação do espaço em torno de sua vítima, era um macaco; na ferocidade, um tigre. Ficou assim o pobre animal em minha memória: Um bicho extremamente perigoso, impossível de se dominar. No caminho precário e longo, meio de ligação entre a roça e a zona urbana, pelo qual também os animais de meu pai transportavam a produção de rapadura, havia até uma curva chamada volta-do-guará.
Creio que aos dez anos de idade, um pouco mais, um pouco menos, sei lá, recebi de meu pai a ordem de viajar da cidade, onde também tínhamos morada, até o sítio, distantes coisa de vinte e cinco quilômetros pelo caminho mais curto. Não era algo que um pai com razoável tino determinasse a um filho daquela idade, mas ordem de meu velho não se discutia; e lá fui eu, escanchado sobre a cangalha de um burro chamado cravo-branco, apelidado assim creio que por causa de sua cor.
Cravo-branco não era bom nem de carga nem de montaria; comigo às costas era ainda pior, pois eu não tinha braços nem chicote para fazê-lo menos lerdo. O caminho ele conhecia e dele não se desviava, fosse dia ou fosse noite, com ou sem chuva – isto ele sabia melhor que eu, pois lhe era mais familiar que a mim, pelas tantas vezes que por ali passara carregando rapadura e nossa feira. Íamos ao ritmo do burro, pé ante pé e, apenas havíamos percorrido coisa de cinco quilômetros, fez-se tardinha, com o sol já posto. A noite se avizinhava e ainda faltavam mais ou menos vinte quilômetros até meu destino.
Foi aí que me lembrei do lobo-guará e da volta-do-guará, por onde teríamos de passar eu e cravo-branco, em plena noite escura. Tremi na base! Lerdo o burro e frouxo eu, vislumbrei-me ração daquele “perigoso” animal. Acuado pela fera, cravo—branco talvez tivesse lá seu momento de esperteza, animado por seu instinto de sobrevivência, e num pinote seguido de uma arrancada disparasse caminho fora, pouco se lixando com a sorte de quem lhe ia ao lombo. Lá se iria meu meio de transporte, que sabia de cor e salteado o caminho, e ficaria eu, com meus poucos quilos de carne, mas suficientes para matar a fone de qualquer lobo. Essa antevisão da desgraça me fez decidir pela volta à origem da viagem, sem mesmo cogitar da leitura que faria meu pai daquele meu ato. Voltei.
Contei pra minha mãe e pra minha irmã os motivos do aborto que fiz da viagem. Para mãe e irmã é sempre mais fácil explicar nossas atitudes. Os arreios do animal com a ajuda delas os tirei, e amarrei cravo-branco num terreno de mato rasteiro que existia à frente de nossa casa. Agora era esperar meu pai “chegar da rua”, como se dizia naquele tempo, talvez da casa de algum amigo, aonde teria ido se distrair da lida semanal e dura no campo. A expectativa era sombria, em nada cômoda naquelas circunstâncias, naquele contexto em que, em minha avaliação, escapara do lobo-guará, estava ali, vivo e são, mas talvez não escapasse à ira de quem, pelo tempo decorrido, possivelmente já me supunha chegado ao destino por ele determinado. Meu velho naturalmente sabia da inexistência por aquelas bandas daquele espécime selvagem, e de que o tal, mesmo na hipótese de existir, não representaria perigo a não ser para as galinhas ao seu alcance. Não sabia ele, entretanto, nem dessas coisas de relação pai versos filho cuidava, de que em meu imaginário, rico das lendas que ouvira, havia sim um lobo-guará e uma curva-do-guará, e mais a real possibilidade de um encontro absolutamente desigual entre mim e a fera, entre o menino e o lobo, entre o fraco e alquebrado e o lépido e voraz, motivos de minha desobediência.
Chegado da rua e posto os olhos sobre os arreios, sua insatisfação ficou de imediato evidente e, como sempre sem considerar meus motivos, ameaçou bater-me, não o tendo feito porque me socorreu minha irmã, que tocou sua consciência, chamando-o a refletir sobre a viagem à hora avançada e sobre minha idade.
Enfim, escapei! Escapei, mas não de todo, e me foi imposto como castigo alternativo passar a noite pastoreando cravo-branco, num lugar onde a oferta de capim não lhe permitisse ficar sem a ração mínima. E lá fomos nós, (pai, filho e muar) para um local às margens da linha de ferro, caminho do trem – eu, para vigiar cravo-branco; meu pai, para me vigiar. Ainda bem que a noite era enluarada e tépida.