sexta-feira, 18 de março de 2011

BERÇO DE CIPÓ

Disseram-me que nasci pelas mãos de uma comadre, uma parteira da roça, e que pela penúltima vez minha mãe cumpriu quarentena, regada a caldo de galinha. Cheguei junto com a Segunda Guerra Mundial, cinqüenta anos depois da Proclamação da República, trinta anos antes de o homem pisar na Lua, sob o governo populista de um gaúcho que optou por sair da vida para entrar na História, e menos de três meses depois que morreu Sigmund Freud, o Pai da Psicanálise. Ah!, me parece que também no mesmo ano passou a existir a figura do Gandula, o catador de bolas nos jogos de futebol.
O evento se deu na ”casa de cima”, uma das duas casas da família, na franja da Mata Atlântica nordestina, no aconchego de um sítio, passados dois meses da morte de Padrinho Miguel, meu bisavô, que morava na “casa de baixo”, e dez anos depois da única missa celebrada ali. Que não me chamem “filho da...”, para que se não faça injustiça à dona Otília, uma mulher de muita vergonha na cara, mas “bisneto da...” faz sentido, e não me levaria à ira, visto que a mãe de meu pai teria sido fruto de uma produção independente, gerada à sombra de alguma sucupira ou à beira de algum regato.
Não tenho conhecimento da hora em que botei a cara no mundo, se de madrugada ou à luz do dia, mas importa que cheguei de forma natural e simples, com um corpo, uma alma, um espírito e um destino. O corpo é normal e tem hoje a altura do homem brasileiro; a alma é frágil, depaupera-se fácil ante as dores alheias; o espírito... deixa pra lá! E sobre meu destino, o que se poderia dizer? Qual a perspectiva e que interesse poderia despertar o amanhã de quem nasceu em berço de cipó, quando o natural e freqüente é indagar-se sobre a história daqueles nascidos em berço de ouro? Que frutos poderia dar um diabo de menino feito e parido no meio do mato, embalado ao som medonho das muriçocas, nutrido à base de papa de goma de mandioca e metido em fraldas de pano de chita? Poder-se-ia olhar para dentro daquele berço, fazer conjecturas e, à meia voz, ou em tênue sussurro, perguntar-se: “Será que vai dar pra gente?” O que se via ali era tão-somente uma miniatura de romântico, uma amostra de gente para quem estavam reservados muitos acontecimentos de extrema carga emocional; uma criança que, se não tinha algo de notório a que puxar dos pais, herdou a emotividade da mãe, chorona irrecuperável e altruísta por vocação, e o gosto do pai pela leitura, um matuto autodidata que não conseguia dormir sem ler qualquer coisa, um pedaço de jornal velho que fosse. E estas duas heranças misturo, fundo, mesclo, meio sem jeito, meio sem criatividade, ora apoiado na dor, ora ao sabor de simples abstração, somando transpiração e inspiração na razão direta da vontade para o talento, ou do infinito para o ponto. Desta mistura, enfim, me tem saído pela pena afora, ao arrepio da gramática e do estilo, um pouco de prosa e de poesia, a que uns têm torcido o nariz, e outros, estes mais dóceis e menos exigentes, me fazem o favor de ler e premiar com uma crítica amena que me deixa envaidecido.
Assim como do mesmo pau de que se faz a imagem, objeto de adoração, se faz, entre outras coisas, o fogo para cozer os alimentos, conforme assevera a Bíblia, também com o mesmo cipó de que se faz o berço dos simples constrói-se o cesto onde se deitam frutos de variada qualidade. Com relação àquele construído com o cipó de meu berço, e se nos valermos da imaginação para figuradamente estabelecer uma hipótese, sem cogitarmos de sua demonstração, poderíamos dizer, eu e os que me conhecem mais de perto, que se deitou nele, naquele cesto pueril, um fruto nem muito azedo nem muito doce, talvez temporão, talvez geneticamente modificado. Temporão, porque sou quase raspa de tacho; transgênico, porque as “sementes” plantadas ali, se remanescentes do mesmo “empório” e inoculadas tais e quais, via de regra produziriam canavieiros ou cultivadores de banana. Como não planto cana nem bananeira, mas apenas conservo, além da saudade do cheiro de mato e dos banhos de açude, o gosto pela bananada e pela rapadura... não seria demais supor que certo elemento biogenético, passageiro de alguma corrente de ar soprado pela brecha da janela adentro no instante sublime da “fusão”, acelerou ou retardou o processo de minha concepção e.... deu no que deu!

2 comentários:

  1. Leio suas prosas e poesias na companhia indispensável do nosso amigo Aurélio, pois só assim não fico apenas admirando a "buniteza" das palavras.

    Apesar de entender que existe dicotomia (corpo, alma=espírito) e não tricotomia (sendo a alma elemento distinto do espírito), entendi sua colocação..."o espírito... deixa pra lá". Mas, como deixar pra lá logo a "parte" mais importante da contituição do homem? Desculpe se insisto nisso, a culpa também é sua. Outrora (1987) estava eu sendo questionado "pelo meu espírito". Quero Desafiá-lo a pensar sobre isso no próximo post, no próxima prosa. Que tal comunhão e salvação?

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  2. Meu caro filósofo calvinista, aprendi (mas devo ter aprendido errado)que alma e espírito são partes distintas, sendo a alma o meio de comunicação com o que está à nossa volta, a empatia e a interação com as pessoas, etc; o espírito seria a janela pela qual nos comunicamos com Deus. Isto explicaria nossa "trindade", que nos faz (ou não?) semelhantes à conhecida TRINDADE. Obrigado pela correção.

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