segunda-feira, 7 de março de 2011

HÁ CEGOS E CEGOS

Há cegos que não podem ver, há os que não querem ver, mas há, também e estranhamente, os que vêem demais, embora tenham nascido sem acuidade visual.
Os que não podem ver são os normais, estes que encontramos todos os dias de bengala na mão, tateando entre um espaço e outro, espreitando atropelos, às vezes com a mão sobre um ombro amigo, quando os há, mas todos para sempre no escuro, esteja escuro ou claro. Entre eles há os que pedem esmolas para si e os que pedem esmolas para quem lhes empresta o ombro, ou seja, existem cegos com necessidades pessoais distintas e cegos para as necessidades alheias e mesquinhas, cujos protagonistas deles lançam mão para se locupletarem, que os instrumentalizam para o engodo e surrupiação da piedade alheia e não precavida.
Entre os que não querem ver, borbulham exemplos. São os que, embora nascidos com acuidade visual, limitada ou não, procedentes e não procedentes de berços de ouro, fazem-se cegos às coisas e pessoas para as quais existem, seja pelo voto, seja pelo juramento, ou mesmo pelas obrigações inerentes ao exercício do cargo ou da cidadania. Estes, nós os encontramos nos serviços públicos nacional, estadual e municipal, e tanto na cúpula quanto na periferia dos três Poderes Constituídos. Circulam no Congresso, no Palácio do Planalto, nos Ministérios e entre os togados e não togados do Poder Judiciário. São as ervas daninhas do dinheiro e da vergonha públicas e privadas, urbana e da roça, e proliferam em todas as camadas sociais, entre pretos e brancos, pobres e nem tanto, com ou sem farda. São tantos que os noticiários televisivos ou da imprensa comum não os comportam, sobram pelo ladrão, e ladroeiramente nos atacam incansável e despudoradamente. Eles têm normalmente em seus perfis a cara deslavada, o cinismo por identidade e a ganância por profissão. Vamos dizer a palavra certa e única – São ladrões!
Felizmente, há os que enxergam demais, posto que cegos. Sobre estes, bastam-me dois exemplos: NOBUYURI TSUJII (pianista) e IOANA GANDRABUR (violonista).



SONHOS DE UM PRETENSIOSO

Essa coisa de pobreza nunca encontrou guarida no painel de meus valores. Não a pobreza em si mesma, nada disso, mas a pobreza enquanto limitante da realização de sonhos, projetos, ou a que nos amesquinha ante as necessidades de cada dia, nossas e do próximo, que cria estratos sociais diversos, sendo nós iguais quanto à espécie e aos olhos da Natureza. Se seremos os mesmos no silêncio da morte, por que não o somos já, agora, no barulho do atual estágio existencial? Se de igual valia nos servirá a tumba fria e escura, que nos fará idênticos, por que não somos iguais agora, se de idêntico modo derramam-se sobre nós o calor e a claridade do mesmo Sol?
Ainda menino, uma professora me chamou de pretensioso. Chamava-se Sílvia, dona Sílvia, e não ia com a cor de meus olhos, tanto que me expulsou de sua sala, e quase do colégio, só porque sugeri um quociente errado em sua aula de divisão. Ora, eu estava apenas engatinhando no universo dos números. Agora não, agora já sei que sete divididos por dois é igual a três, noves fora ela.
Bom, “pretensioso” vem de pretender, mas à época passei batido, não alcancei o que ela quis dizer com isso. A idéia, com certeza, da qual só muito mais tarde vim me dar conta, era de que eu, aos seus olhos, seus e provavelmente de outros, comportava-me como um metido, alguém que se insinuava descabidamente acima de sua realidade. Alguma sabedoria se revelara naquela observação docente, pois no fundo eu, ainda que sem essa pretensão, haveria de exteriorizar desde cedo aquilo que só mais tarde ser-me-ia possível entender.
O começo disso tudo talvez e provavelmente esteja no fato de que eu era um pobre rico, ou um rico pobre. Um rico, sim, porque meu pai era dono de trezentos hectares de terra, com engenho e muitas árvores, lavoura de café e muitas bananeiras, mas confessava-me não ter dinheiro quando eu lhe pedia um caderno para levar à escola. Essa contradição que o destino me impunha, um rico sem caderno, ou sem caderno embora rico, deve ter feito minha cabeça e moldado meu caráter. Daí até ser chamado de pretensioso foi um pulo, que o digam as professoras da vida e os psicólogos de plantão. Esse tipo de pobreza, a do confronto entre o ter e o não ter, deu no que deu: Um metido a ser aquilo cuja exterioridade desaprovava, ainda que minha interioridade, que era e é inobservável, fugidia, me dissesse o contrário e fosse a raiz da árvore que pretendia dar frutos distintos daqueles prometidos por seu aparente e minguado viço.
Pobre de fato e de origem, sonhei sonhos altos, tão sem limites que nem o céu lhes servia de fronteira. Divaguei muito e por distintos modos e lugares sobre como sair da precariedade e alcançar fartura. Os caminhos foram os mais diferentes possíveis, e todos me levavam do “nada” ao “tudo”, da obscuridade à notoriedade, desde a ignorância até o domínio de muitas ciências, do falar mal a língua pátria à fluência em vários idiomas, do sem caderno à incomensurável fortuna. Esses anelos eram instrumentalizados segundo a inspiração do momento e pela insônia de quase todas as noites. Imaginei-me em mil situações, interpretei vários personagens, fui Presidente e notável empreendedor, craque de futebol e astro do cinema, cientista e pesquisador, tudo na mais alta medida, em nada alcançável pelos mortais próximos ou distantes. Eu era o cara!
Quando jogador de futebol, Pelé seria gandula ou no máximo peladeiro de fins de semana, e Maradona, engraxate de chuteiras; quando Presidente, a história do Brasil dividia-se em antes e depois de mim, chegava ao topo das nações mais desenvolvidas, com maior PIB; se astro de cinema, ganhava todos os prêmios de todas as academias; uma vez cientista ou pesquisador, o Mundo alcançava as respostas para todos seus males, inclusive a cura do câncer; se empreendedor, construía o maior conglomerado empresarial, diversificado e sem concorrentes, e fabricava carros, navios e aviões, e era dono das maiores jazidas de petróleo. Muitas vezes eu me dava o direito de ter e de ser tudo isso ao mesmo tempo.
A imprensa, daqui e de fora, me bajulava e me suplicava uma palavra, ainda que a troco de um altíssimo cachê. Mas tudo isso era burilado, pensado com meus botões, urdido na calada das noites com o fim de socorrer os pobres de coisas materiais ou de espírito, parentes ou não. Concomitantemente, eu passeava mentalmente sob os viadutos, subia os morros das favelas, entrava nas filas matutinas dos hospitais públicos, visitava as escolas do governo, destampava as panelas dos excluídos, estendia o olhar para os açudes e cisternas secas do agreste e do sertão, tangia com os vaqueiros o gado magro e sedento, jogava dama com os aposentados marginalizados, à beira dos esgotos a céu aberto brincava com as crianças barrigudas e desnutridas. E os sonhos iam assim de mãos dadas comigo por estes lugares afora, ao ritmo do constrangimento, da intolerância, do inconformismo, monitorando as miserabilidades, fazendo o senso particular e sintomático dos sem pão e sem nada, medindo a extensão e a profundidade de cada caso, como para dar aos sonhos a amplitude necessária à extinção de toda pobreza, extrema ou não, de modo que todos tivessem os cadernos de que carecessem, todas as roupas e calçados que os vestissem, a alimentação farta, saborosa e nutritiva, o lar decente e aconchegante, o acesso à educação de qualidade, a assistência médica de ponta, o completo e necessário lazer. E quando alcançava estes longínquos horizontes, eu de novo virava pobre, tornava-me de novo refém do destino, e dormia, e sonhava o sonho possível ou nenhum, até a noite próxima, quando um novo sonho tirava-me o sono e me fazia outra vez pretensioso.

O GRANDE E DESCONHECIDO PIANISTA

Minha paixão por música, sobretudo pelas instrumental e clássica, meteu-me pela cabeça adentro a ideia de aprender piano. Observada a questão realisticamente, tava mais para doidice que para ideia, na verdade, visto que eu não podia pagar as aulas nem muito menos comprar um piano. À época, com certeza não podia; no futuro, só se eu acertasse na loteria. Foi daí que meu irmão mais velho, não sei por que cargas d’água, resolveu bancar essa minha doideira. Pianista um dia, uma forma haveria de surgir que me possibilitasse adquirir o instrumento, ainda que usado. Era um sonho ousado demais, mas como sonhar nunca custou nada...
Havia uma senhora que dava aulas de piano em sua própria casa, e pra lá fui eu inserir-me no rol de seus poucos alunos, analfabeto do dó ao si, com total ignorância daquelas teclinhas pretas e brancas, estas mais grandinhas e achatadas. Era tudo novidade, tudo inédito para meus dedos virgens até dos acordes mais simples, confrontados então com os sustenidos, bemóis, colcheias, semibreves e com o resto. A professora cuidava mais das panelas que de mim, punha-se mais ao fogão que ao meu lado. - Tá errado, gritava lá da cozinha, é mais rápido! Olhe o ritmo! Lá uma vez ou outra se achegava, corrigia-me de perto, mostrava-me com qual dedo devia premir uma e outra tecla.
Uma vez conhecido o teclado, dominada a escala musical, era chegada a hora de começar a tocar uma música, aprendida, claro, aos pedaços, nota por nota, acorde por acorde, os dedos deslizando acanhados por aquelas teclinhas pretas e brancas, o ritmo defasado, meus olhos confusos entre as bolinhas do pentagrama e o teclado, acima e abaixo, pra direita e pra esquerda – uma canseira! A primeira música, acredite se quiser, foi La Cumparsita; e eu tocava, tocava, tocava, e às vezes soava da cozinha a observação: “Isso é um tango, não um bolero!” Mas eu tinha dificuldade de identificar uma e outra coisa; minha preocupação era achar no teclado os sinalzinhos da partitura, que eu traduzia tudo como de mesma cadência rítmica. Era muita informação para dois olhos só, um par de olhos que amiúde não combinavam com o par de mãos, estas também atrapalhadas e sem coordenação, perdidas sobre aquele emaranhado de pauzinhos pretos e brancos. Com o tempo, saiu o tango, mesquinho, chulo, é verdade, mas saiu, e não se podia exigir perfeição de um porqueira de aluno de música sem o instrumento em casa para a prática das orientações que vinham sopradas junto com a fumaça das panelas. Chopin deve ter se contorcido demais em sua tumba, preocupado talvez que a cozinheira, digo, que a mestra me levasse da Argentina pra Paris e me fizesse “assassinar” algum noturno seu. Mas teria sido uma preocupação à toa, porque de “La Cumparsita” passei à “Cabecinha no Ombro”, então um sucesso.
Estava para acontecer uma apresentação beneficente num clube da cidade, com a renda destinada a alguma entidade carente do município. Eram chegadas a hora e a vez de convocar os talentos da terra, aqueles com o dom de cantar, de declamar poemas, de dançar e de tocar algum instrumento. Entendeu minha mestra que eu merecia lugar naquele elenco, e falou comigo, disse-me da beneficência, das necessidades alheias e do bem que faz às almas esses arroubos de caridade. Metida mais entre as iguarias do almoço que entre meus tímidos dedilhados, os ouvidos mais atentos ao som das fervuras das panelas que ao do piano, não se deu conta de que aquela empreitada exigia mãos mais hábeis e nervos mais dentro da pele, e enfiou meu nome na lista dos que iam entreter o público doador, abnegados e abnegadas, todos aqueles que iriam trocar seu dinheirinho por um espetáculo plantado e colhido no solo comum. Ajudavam-se os irmãos necessitados e conhecia-se o conjunto dos “artistas” conterrâneos, sobretudo o cantado e decantado pianista. Essa era a ideia. Sobre minha indicação para o evento, o erro foi também meu, que condescendi pronta e irrestritamente, movido pelo altruísmo e sem forças para dizer não, ainda que me soubesse despreparado para tal empreitada.
O dia do show foi chegando e o marketing caiu nas ruas e nas praças. Entre os muitos slogans, estava: Venha ver o grande pianista que a cidade desconhece, e “o grande pianista” era euzinho aqui. Eu soube disso pela boca dos outros, à boca pequena, como dizem. – “Puxa, Paulo, eu não sabia que você toca piano, rapaz!”, e discorriam sobre a propaganda, sobre o apelo à população. Entrei em pânico! A professora entendeu que eu tinha que meter Cabecinha no Ombro neles, e haja treinar, treinar e treinar, repetir o bolero até a exaustão. Penso que o tocaria de costas. “Encosta tua cabecinha no meu ombro e chora...”, assim dizia a letra, mas eu, que não tinha ombro em que chorar, me arrepiava debaixo e fora dos lençóis, arrependia-me do sonho de pianista, que virara pesadelo, mas escapar, embora fosse preciso, não podia. Meu nome estava na lista e na boca do povo, meu “gênio tecladista” fazia cócegas nos espíritos curiosos de meus conterrâneos, e eu estava frito, faltando apenas ser digerido pela crítica futura e certa.
Chegou o dia. O Clube estava repleto, saía gente pelo ladrão. As apresentações se sucediam e minha vez se aproximava. Eu sentia vontade de morrer. Onde estava com a cabeça quando concordei com minha inscrição naquele troço? Agora Inês era morta e o vexame garantido e iminente. Pianista! O diabo com certeza tocava muito melhor que eu, que não tocava nada, e a “Cabecinha no Ombro” fora de meus dedos e de meus miolos! Eu não me sentia sobre o palco, mas o palco sobre mim, socando-me chão adentro. Enfim, meu nome foi anunciado. Entrei rindo sem querer rir, um riso xoxo, as pernas bambas diante daquele povaréu, que se mexia ávido nas cadeiras, todos de olhos e ouvidos escancarados para se extasiarem com a apresentação do grande e desconhecido pianista, que finalmente estava ali diante deles, em carne e osso, matérias que eu já nem sentia possuir. Depois daquele riso frouxo e amarelo, dirigi-me ao piano, o famigerado, preto como o cão, aquela coisa enorme e pesada repleta de teclas, e o banco sobre o qual eu haveria de pôr minhas carnes tensas. Logo de cara, enfiei a mão por entre as pernas e puxei o malvado para debaixo de mim, não do modo clássico, tradicional, cavalheiro, comum aos artistas, mas fui com o braço e a cabeça para o vão das pernas, tal como quem puxa um pinico para o lugar da descarga intestinal, que estava por pouco. O vexame começava apenas. E a plateia ali, tesa, muda, impactada, os olhos pregados em mim, com certeza sentindo-se vítima de uma propaganda enganosa que a colocou, ao contrário, diante do pior pianista que a cidade lucraria desmedidamente mais em continuar desconhecendo. Arriado sobre aquele pobre banco, não via o dó nem o ré, não via nada, aquilo me parecia mais um queijo fatiado e queimado nas pontas, indigesto, que não servia pra coisa alguma, muito menos pra dispersar pelos ares daquele salão enorme a tal “Cabecinha no Ombro”, naquele instante para mim sem cabeça e sem ombro. Os dedos faltaram-me, os olhos cegaram-me, a memória se me apagara, e eu ali embasbacado, tolhido, vexado, amofinado, tremendo como vara verde, acuado feito um viralatas sarnento ante o chicote de seu dono, sem nada e sem pernas para correr, que era o que eu gostaria de ter feito.
A filha de minha professora, à cata de um recurso último para tornar menor o desastre, pôs-se de cócoras atrás do piano e me ditava as notas; mas eu não as encontrava, as do teclado eram diversas e amoitadas, a música não saía, eu amaldiçoava o compositor e a partitura, a professora e o piano, o público e a mim. A vontade era de mandar tudo e todos ao diabo e sumir daquele lugar medonho. Maldita beneficência!
Lá para as tantas, depois de consagrado o retumbante fiasco, os nervos já um pouco em seus lugares, consegui atropeladamente tocar alguma coisa, entrar de leve no clima, mas a plateia, ou para encurtar-me o martírio ou para livrar-se de mim, me aplaudiu ao cabo da primeira parte, ficando a segunda parte para nunca mais, tal como o piano, com ou sem loteria, novo ou usado, e assim também as aulas e a fumaça das panelas. Sepultei ali mesmo a carreira e mandei o resto para os ares, menos La Cumparsita e Cabecinha no Ombro, que sempre quis mandar pro inferno, mas que teimam em ficar na minha memória. A MÚSICA, popular ou clássica, até hoje diz amém!

MEMÓRIAS DAS PRIMEIRAS LETRAS

Dificilmente existe alguém que não se recorde com saudade dos tempos da primeira escola, das primeiras professoras, daquelas abnegadas e respeitosas senhoras que nos ensinaram as primeiras letras e as primeiras contas matemáticas. Seja qual for nosso grau de conhecimento atual, reconhecemos todos que tudo começou nos bancos das escolas primárias.
Também comigo dá-se o mesmo. Vez por outra me pego divagando sobre aqueles tempos remotos, sobre os primeiros companheiros de estudos, os que eram mais engraçados, os mais sisudos, os mais inteligentes; lembro-me - por que não? - do recreio, da merenda, do leite doado pelos americanos, do futebol... Quase nada me escapa à memória, inclusive os acontecimentos negativos, para não dizer esdrúxulos, que me deixaram marcas. E é justamente dos eventos negativos, ao menos três casos, que pretendo trazer à luz nesta minha “viagem” ao passado distante.
CASO I
Minha primeira professora, dona Hilda, magra e alta, exacerbada defensora da disciplina escolar, de quem era aluna inclusive minha irmã Eunice, imediatamente mais velha que eu, e de quem guardo triste memória, pela forma trágica como nos deixou, foi protagonista da maior surra de todos os tempos que sofri de meu pai. Do motivo daquele castigo só o vim desconfiar já adulto, por dedução e depois de muitas tentativas, de tantas conjeturas que fiz na busca do que poderia ter acontecido em sala de aula, a ponto de me fazer sofrer o que sofri.
Tudo começou com um exercício de grafia, onde dona Hilda nos pedia para escrever em nossos cadernos dezenas de coisas: dez cadernos, dez bolas, dez bois, etc. Dentre meus exemplos, escrevi “dez patas”, e foi neste exemplo, creio, que o bicho pegou. O primeiro “a” de “patas” deve ter ficado meio aberto, e a exigente mestra viu ali um palavrão, um ato imperdoável que deveria ser levado incontinenti ao conhecimento de meus pais para o corretivo urgente e necessário. Fez a professora um bilhete e o entregou a minha irmã. Tímido e leso não questionei a bronca e o bilhete, e fiquei à mercê dos acontecimentos iminentes e com certeza desapiedados, sobretudo dependendo das mãos sobre as quais cairia o recado da professora.
Chegados a nossa casa, minha irmã, com o bilhete na mão, procurou por minha mãe, mas meu dia não era mesmo de sorte e dona Otília não estava lá, o que era raro acontecer. O tal manuscrito foi entregue, por segunda e última opção, a meu pai, que lá se encontrava, coisa também rara de se dar. Seus olhos faiscaram após a leitura que fez do que escrevera dona Hilda; um de seus pesados chinelos passou-lhe do pé à mão direita, com a esquerda espalmou minhas frágeis mãos e os “bolos” se sucederam um após outro, em revezamento, ora na mão esquerda, ora na direita, até fazê-las vermelhas e ardidas. Da copa, ambiente da primeira sessão do castigo, fui levado para a sala de estar. Voltado para a porta de entrada da casa, fui posto de joelhos e com os braços abertos. Era uma quarta-feira e as pessoas que chegavam, moradores ou não do sítio, vizinhos e não vizinhos, todos se impactavam com aquele quadro, olhavam sem entender para aquela criança de joelhos e de braços em cruz. Meu constrangimento era medonho, doía-me na alma tanto quanto o fizeram-me as lapadas do chinelo. Meu pai sentou-se num banquinho ao lado, e me xingava, e me chamava disso e daquilo... O diabo! Passado um tempo, se levantava, torcia-me com vigor a orelha esquerda e ia até à cozinha; no instante seguinte, voltava e batia com os dedos dobrados em minha cabeça, o conhecido “cocorote”, e essa duplicidade de atos meu pai a repetiu pela tarde afora, indiferente ao espetáculo que aquilo representava aos que chegavam, familiares ou não, e ao meu estado de exaustão pela aspereza e extensão do castigo. Cruz credo!
CASO II
Aposentou-se dona Hilda e foi substituída por dona Nina, que me parecia ter lá seus quarenta e cinco a cinquenta anos de vida. Era boa gente, não tinha o estilo disciplinador de sua antecessora e interagia amistosamente com os alunos. À tarde, ela lecionava em outra escola, na mesma rua e distante coisa de trezentos metros. Passado algum tempo, entendeu dona Nina de me convidar para auxiliá-la no período da tarde, alegando que precisava de alguém para copiar-lhe os resumos de suas aulas, que chamávamos de “pontos”, e eu tinha, disse-me, a letra boa (aff!).
Dada a minha idade, creio que coisa de treze anos, fazia-se necessário pedir a autorização de minha mãe. Ela foi até minha casa e fez o pedido. Minha mãe adorou a idéia, e me disse: Vá, meu filho, porque enquanto ajuda à professora você também aprende. Só não me disse, mas lhe deve ter passado pela cabeça, que aquela ocupação vespertina me afastaria do futebol e das “más companhias”, comuns aos garotos de minha idade e que mexem com os miolos dos pais. O que não imaginava minha mãe, e muito menos eu, é que dona Nina tinha outros propósitos em mente. Então lá ia eu, todas as tardes, para a outra escola copiar pontos e “aperfeiçoar meus embrionários aprendizados”. Sentava-me à mesa com a professora, ela de frente para seus alunos, naturalmente, e eu à sua esquerda, na cabeceira de sua mesa, copiando os tais resumos. Passados poucos dias daquele trabalho conjunto, eis que me dou conta de que a velha mestra me fazia com sua mão esquerda carícias em minha coxa direita. Naquela época os meninos usavam calça curta. Ela fazia aquilo indiferente à real possibilidade de ser vista naquela intimidade pelos seus alunos sentados à sua frente. Sempre que olhava pra ela, como a inquiri-la da razão daquilo, via-a com os olhos postos sobre mim, de um modo que hoje eu chamaria de “libidinoso”, ou de peixe morto, vá. Diante daquela situação, meu estado de espírito era de fazer dó e eu sequer tinha coragem de esboçar qualquer gesto de repúdio, de tomar qualquer atitude de defesa. Visto isso, eu ia de má vontade “cooperar” com ela e por ela ser assediado, postos frente a frente um bruguelo de treze anos e uma mulher de no mínimo quarenta e cinco, ela separada do marido e mãe de uma menina pouco mais nova que eu. Apesar das desavergonhadas atitudes daquela megera, faltava-me ânimo para falar em casa sobre aquelas coisas medonhas, numa época em que eu nunca ouvira falar em pedofilia e no tempo em que se tinha das professoras exemplos de ética e de moral, sendo cada uma delas a extensão do hábito disciplinador de nossos pais e fonte de saber.
Numa daquelas tardes, levou-me dona Nina pela mão até uma sala adjacente ao salão escolar, ergueu meu queixo e me aplicou um beijo na boca. Eu não sabia como reagir àquilo, fiquei abestalhado, era ingênuo e tímido demais, e este estado de coisas perdurou até que ela se mudou para o Rio de Janeiro. Aleluia!

CASO III
No ano escolar seguinte, minha mãe matriculou-me no Ginásio Municipal, então a melhor escola da cidade, bonita e gratuita, se se pode chamar de gratuito algo que se consegue às custas de pesados e compulsórios impostos. No corpo discente, viam-se os filhos da elite local dividindo assentos com os menos favorecidos, porque afinal ali estava o grau maior da escala do saber disponível naquele município. No docente, os grandes mestres de Latim, Francês, Inglês, etc, e dentre os tais o de maior domínio da língua portuguesa que já conheci. Os estudos além do Curso Ginasial teriam que ser buscados em cidades de maior porte ou na capital, restritos, claro, àqueles de maior renda.
Pois bem, o fato concreto é que fui matriculado, um novo ano letivo se aproximava, mas, como diria Noel Rosa, com que roupa eu iria às aulas? Com que indumentária vestir-me-ia minha mãe se não tinha à mão outra renda além daquele minguado dinheirinho miúdo entregue por meu pai, então já separado de minha mãe, e que mal permitia nossa sobrevivência? Era uma questão difícil de resolver! Sem alternativa mais satisfatória, se levado em conta o perfil indumentário com o qual eu teria que me adequar, que me aproximasse, pelo menos, ao uniforme de uso dos outros alunos, a saída foi apertar ainda mais o cinto e comprar um tecido ao prestamista, aquele do tempo da cadernetinha que ia de porta em porta até à casa do cliente para receber as faturas acordadas. Então se comprou um tecido chamado oracebo, um pano que não conheci antes nem deopois, que de tão ruim não se lhe conseguia dar vinco, e de cor difícil de definir. A confecção, a fez uma costureira da rua, quase vizinha e muito íntima da gente, possivelmente sem cobrar pelo serviço. Mas de fato não havia goma nem ferro quente que lhe desse melhor alinho.
Faltava ainda o que pôr nos pés; o dinheiro não dava para tanto, para atender a mais essa necessidade, nem a escola me aceitaria de chinelo ou de pés no chão. Mas dessa me livrou um parceiro de futebol, das peladas com bolas de meia ou de borracha, morador da mesma rua, à época aprendiz da arte de sapateiro. Num gesto de boa vontade, pegou meu amigo das brochas, martelo, couro, pedaços de pneu velho e fez-me um par de alpargatas (então mais conhecida como alpercatas), alguma coisa de certo modo, convenhamos, personalizada, conquanto sem alguma semelhança com os calçados disponíveis nas lojas calçadeiras. Era um modelo único, só meu, pensado apenas para meus pés. Estava eu, assim, vestido e calçado, de calça nova, posto que bufenta, sem pés no chão, e agora era aguardar o início das aulas.
Quando esse dia chegou, lá fui eu caminho afora, com aquela calça fofa e os pés metidos naquela “obra prima” manufaturada pelo aprendiz de sapateiro, credor até hoje de meus agradecimentos pelo gesto altruísta e despido de outra pretensão que não a de viabilizar minha continuidade nos estudos. A matéria não valia muito, mas o favor era impagável.
O ginásio era no centro da cidade, de frente à Prefeitura e desta separado por um vão, através do qual passava o trem, na época o principal meio de transporte entre o interior agrestino e a capital, cujo apito servia até de relógio. – Piuiiii, olhe o apito do trem, são sete horas! Ligando os dois lados da linha do trem havia – e ainda há - um pontilhão, através do qual deixávamos a rua da Prefeitura e chegávamos ao Ginásio. Tangenciando as calçadas de ambas as ruas paralelas, a da Prefeitura e a do Ginásio, havia um muro contínuo e baixo, chamado cais talvez porque ficasse às margens da ferrovia, que nos servia de assento e ponto de encontro enquanto esperávamos o início das aulas. Sobre o cais da frente do Ginásio, lá estavam os alunos em grande número, um grupinho aqui, outro ali, todos metidos em seus uniformes: As moças vestidas de saia azul marinho pregueada e blusa branca; os rapazes, de camisa e calça caque, esta com uma fita azul de cada lado. Eram uniformes de fato bonitos e em si mesmos elementos de distinção entre aquela unidade de ensino e as demais escolas da cidade.
Ao vislumbrar aquele quadro, escolhi não atravessar o pontilhão e me inserir naquela massa estudantil posta do lado de lá. Como diria Graciliano Ramos, eu estava encalacrado. Meu perfil fazia-me diferente pelo que me vestia e me calçava. Sentei-me à frente da sede do Poder Executivo e pus-me a matutar sobre a correlação entre mim e meus futuros colegas. Entreguei-me àquela observação minuciosa, afeito aos detalhes que deles me distinguiam pela vestimenta, e assim fiquei até a sineta tocar e os estudantes adentrarem ao Ginásio, escada acima. Minha decisão foi pela volta para casa, sair de fininho, feito cachorro magro, deixando para trás o Ginásio e o resto. Sob o espanto de minha mãe, ao me ver regressar tão cedo, respondi com uma desculpa qualquer e ela felizmente condescendeu.
No dia seguinte a história se repetiu, de novo não resisti às comparações e aquele dilema me empurrou pelo caminho da volta, cabisbaixo, chutando latas, embezerrado, preocupado com minha nova desculpa e com o que iria acontecer em casa.
A desculpa reprisada na minha segunda falta às aulas não funcionou, soou esfarrapada e improcedente, sem chance de justificativa, e ouvi de minha mãe, com todas as letras: - Ou você entra naquela escola ou subo aquela escada com você pelas orelhas!
Naquele momento me vi sem escolha, porque logo um anjo qualquer me segredou que levado pelas orelhas escada acima eu ira chamar mais a atenção do que se escolhesse enfrentar a turba com minha calça de oracebo e minhas alpercatas fabricadas pelas mãos ainda inseguras de meu amigo. Não havia plano B ou C, restava-me apenas aceitar a situação, vencer o medo da galhofa e subir os degraus do pomposo educandário com as orelhas fora das mãos de dona Otília, que me queria intelectualmente preparado, e sem nenhuma disposição para deixar fora dos objetivos o dinheiro gasto comigo, a duras penas. Fui!
Fui e me dei bem. Ganhei amigos, enturmei-me, alcancei vestir-me igual, ali vivi momentos que marcaram minha vida. E a expressão “subo aquela escada com você pelas orelhas”, tenho hoje como sábia, proferida por quem realmente se incomodava comigo. Foi uma atitude de amor. Foi o desabrochar de alguém que não tinha nada para alguém mais preparado para caminhar com outro calçado, a capacidade de interagir com o mundo e com as pessoas; com outra roupa, a do saber, insipiente embora, mas asas para voar sonhos mais altos, quiçá alcançáveis pelo esforça e com as ferramentas que me eram entregues a cada aula. Dos projetos utópicos fui pouco a pouco passando aos possíveis; do fantasma do nada me vi caminhando na direção de alguma coisa; das comparações que me amesquinhavam passei às que me faziam igual.
Ainda era cedo para compreender no todo a “ameaça” de minha mãe. Seria necessária a sabedoria dos adultos para alcançar a medida exata daquele gesto materno, que hoje entendo como um divisor de águas, a separação de uma infância sem nada para um horizonte mais promissor e alcançável. O descer dos degraus daquela escola seria no final para caminhar na direção de outro mundo, na busca de outras conquistas, então mais palpáveis, sem, contudo, tirar os pés do passado e a memória de quem me vestiu e me calçou para os primeiros passos. Descobri que o que trazemos no corpo e sob os pés pouco tem a ver com o que temos na cabeça, na alma e no coração, ainda que a sociedade tenha lá seus paradigmas e confunda, muitas vezes, o verdadeiro com o aparente. Venci!