segunda-feira, 7 de março de 2011

O GRANDE E DESCONHECIDO PIANISTA

Minha paixão por música, sobretudo pelas instrumental e clássica, meteu-me pela cabeça adentro a ideia de aprender piano. Observada a questão realisticamente, tava mais para doidice que para ideia, na verdade, visto que eu não podia pagar as aulas nem muito menos comprar um piano. À época, com certeza não podia; no futuro, só se eu acertasse na loteria. Foi daí que meu irmão mais velho, não sei por que cargas d’água, resolveu bancar essa minha doideira. Pianista um dia, uma forma haveria de surgir que me possibilitasse adquirir o instrumento, ainda que usado. Era um sonho ousado demais, mas como sonhar nunca custou nada...
Havia uma senhora que dava aulas de piano em sua própria casa, e pra lá fui eu inserir-me no rol de seus poucos alunos, analfabeto do dó ao si, com total ignorância daquelas teclinhas pretas e brancas, estas mais grandinhas e achatadas. Era tudo novidade, tudo inédito para meus dedos virgens até dos acordes mais simples, confrontados então com os sustenidos, bemóis, colcheias, semibreves e com o resto. A professora cuidava mais das panelas que de mim, punha-se mais ao fogão que ao meu lado. - Tá errado, gritava lá da cozinha, é mais rápido! Olhe o ritmo! Lá uma vez ou outra se achegava, corrigia-me de perto, mostrava-me com qual dedo devia premir uma e outra tecla.
Uma vez conhecido o teclado, dominada a escala musical, era chegada a hora de começar a tocar uma música, aprendida, claro, aos pedaços, nota por nota, acorde por acorde, os dedos deslizando acanhados por aquelas teclinhas pretas e brancas, o ritmo defasado, meus olhos confusos entre as bolinhas do pentagrama e o teclado, acima e abaixo, pra direita e pra esquerda – uma canseira! A primeira música, acredite se quiser, foi La Cumparsita; e eu tocava, tocava, tocava, e às vezes soava da cozinha a observação: “Isso é um tango, não um bolero!” Mas eu tinha dificuldade de identificar uma e outra coisa; minha preocupação era achar no teclado os sinalzinhos da partitura, que eu traduzia tudo como de mesma cadência rítmica. Era muita informação para dois olhos só, um par de olhos que amiúde não combinavam com o par de mãos, estas também atrapalhadas e sem coordenação, perdidas sobre aquele emaranhado de pauzinhos pretos e brancos. Com o tempo, saiu o tango, mesquinho, chulo, é verdade, mas saiu, e não se podia exigir perfeição de um porqueira de aluno de música sem o instrumento em casa para a prática das orientações que vinham sopradas junto com a fumaça das panelas. Chopin deve ter se contorcido demais em sua tumba, preocupado talvez que a cozinheira, digo, que a mestra me levasse da Argentina pra Paris e me fizesse “assassinar” algum noturno seu. Mas teria sido uma preocupação à toa, porque de “La Cumparsita” passei à “Cabecinha no Ombro”, então um sucesso.
Estava para acontecer uma apresentação beneficente num clube da cidade, com a renda destinada a alguma entidade carente do município. Eram chegadas a hora e a vez de convocar os talentos da terra, aqueles com o dom de cantar, de declamar poemas, de dançar e de tocar algum instrumento. Entendeu minha mestra que eu merecia lugar naquele elenco, e falou comigo, disse-me da beneficência, das necessidades alheias e do bem que faz às almas esses arroubos de caridade. Metida mais entre as iguarias do almoço que entre meus tímidos dedilhados, os ouvidos mais atentos ao som das fervuras das panelas que ao do piano, não se deu conta de que aquela empreitada exigia mãos mais hábeis e nervos mais dentro da pele, e enfiou meu nome na lista dos que iam entreter o público doador, abnegados e abnegadas, todos aqueles que iriam trocar seu dinheirinho por um espetáculo plantado e colhido no solo comum. Ajudavam-se os irmãos necessitados e conhecia-se o conjunto dos “artistas” conterrâneos, sobretudo o cantado e decantado pianista. Essa era a ideia. Sobre minha indicação para o evento, o erro foi também meu, que condescendi pronta e irrestritamente, movido pelo altruísmo e sem forças para dizer não, ainda que me soubesse despreparado para tal empreitada.
O dia do show foi chegando e o marketing caiu nas ruas e nas praças. Entre os muitos slogans, estava: Venha ver o grande pianista que a cidade desconhece, e “o grande pianista” era euzinho aqui. Eu soube disso pela boca dos outros, à boca pequena, como dizem. – “Puxa, Paulo, eu não sabia que você toca piano, rapaz!”, e discorriam sobre a propaganda, sobre o apelo à população. Entrei em pânico! A professora entendeu que eu tinha que meter Cabecinha no Ombro neles, e haja treinar, treinar e treinar, repetir o bolero até a exaustão. Penso que o tocaria de costas. “Encosta tua cabecinha no meu ombro e chora...”, assim dizia a letra, mas eu, que não tinha ombro em que chorar, me arrepiava debaixo e fora dos lençóis, arrependia-me do sonho de pianista, que virara pesadelo, mas escapar, embora fosse preciso, não podia. Meu nome estava na lista e na boca do povo, meu “gênio tecladista” fazia cócegas nos espíritos curiosos de meus conterrâneos, e eu estava frito, faltando apenas ser digerido pela crítica futura e certa.
Chegou o dia. O Clube estava repleto, saía gente pelo ladrão. As apresentações se sucediam e minha vez se aproximava. Eu sentia vontade de morrer. Onde estava com a cabeça quando concordei com minha inscrição naquele troço? Agora Inês era morta e o vexame garantido e iminente. Pianista! O diabo com certeza tocava muito melhor que eu, que não tocava nada, e a “Cabecinha no Ombro” fora de meus dedos e de meus miolos! Eu não me sentia sobre o palco, mas o palco sobre mim, socando-me chão adentro. Enfim, meu nome foi anunciado. Entrei rindo sem querer rir, um riso xoxo, as pernas bambas diante daquele povaréu, que se mexia ávido nas cadeiras, todos de olhos e ouvidos escancarados para se extasiarem com a apresentação do grande e desconhecido pianista, que finalmente estava ali diante deles, em carne e osso, matérias que eu já nem sentia possuir. Depois daquele riso frouxo e amarelo, dirigi-me ao piano, o famigerado, preto como o cão, aquela coisa enorme e pesada repleta de teclas, e o banco sobre o qual eu haveria de pôr minhas carnes tensas. Logo de cara, enfiei a mão por entre as pernas e puxei o malvado para debaixo de mim, não do modo clássico, tradicional, cavalheiro, comum aos artistas, mas fui com o braço e a cabeça para o vão das pernas, tal como quem puxa um pinico para o lugar da descarga intestinal, que estava por pouco. O vexame começava apenas. E a plateia ali, tesa, muda, impactada, os olhos pregados em mim, com certeza sentindo-se vítima de uma propaganda enganosa que a colocou, ao contrário, diante do pior pianista que a cidade lucraria desmedidamente mais em continuar desconhecendo. Arriado sobre aquele pobre banco, não via o dó nem o ré, não via nada, aquilo me parecia mais um queijo fatiado e queimado nas pontas, indigesto, que não servia pra coisa alguma, muito menos pra dispersar pelos ares daquele salão enorme a tal “Cabecinha no Ombro”, naquele instante para mim sem cabeça e sem ombro. Os dedos faltaram-me, os olhos cegaram-me, a memória se me apagara, e eu ali embasbacado, tolhido, vexado, amofinado, tremendo como vara verde, acuado feito um viralatas sarnento ante o chicote de seu dono, sem nada e sem pernas para correr, que era o que eu gostaria de ter feito.
A filha de minha professora, à cata de um recurso último para tornar menor o desastre, pôs-se de cócoras atrás do piano e me ditava as notas; mas eu não as encontrava, as do teclado eram diversas e amoitadas, a música não saía, eu amaldiçoava o compositor e a partitura, a professora e o piano, o público e a mim. A vontade era de mandar tudo e todos ao diabo e sumir daquele lugar medonho. Maldita beneficência!
Lá para as tantas, depois de consagrado o retumbante fiasco, os nervos já um pouco em seus lugares, consegui atropeladamente tocar alguma coisa, entrar de leve no clima, mas a plateia, ou para encurtar-me o martírio ou para livrar-se de mim, me aplaudiu ao cabo da primeira parte, ficando a segunda parte para nunca mais, tal como o piano, com ou sem loteria, novo ou usado, e assim também as aulas e a fumaça das panelas. Sepultei ali mesmo a carreira e mandei o resto para os ares, menos La Cumparsita e Cabecinha no Ombro, que sempre quis mandar pro inferno, mas que teimam em ficar na minha memória. A MÚSICA, popular ou clássica, até hoje diz amém!

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