segunda-feira, 7 de março de 2011

MEMÓRIAS DAS PRIMEIRAS LETRAS

Dificilmente existe alguém que não se recorde com saudade dos tempos da primeira escola, das primeiras professoras, daquelas abnegadas e respeitosas senhoras que nos ensinaram as primeiras letras e as primeiras contas matemáticas. Seja qual for nosso grau de conhecimento atual, reconhecemos todos que tudo começou nos bancos das escolas primárias.
Também comigo dá-se o mesmo. Vez por outra me pego divagando sobre aqueles tempos remotos, sobre os primeiros companheiros de estudos, os que eram mais engraçados, os mais sisudos, os mais inteligentes; lembro-me - por que não? - do recreio, da merenda, do leite doado pelos americanos, do futebol... Quase nada me escapa à memória, inclusive os acontecimentos negativos, para não dizer esdrúxulos, que me deixaram marcas. E é justamente dos eventos negativos, ao menos três casos, que pretendo trazer à luz nesta minha “viagem” ao passado distante.
CASO I
Minha primeira professora, dona Hilda, magra e alta, exacerbada defensora da disciplina escolar, de quem era aluna inclusive minha irmã Eunice, imediatamente mais velha que eu, e de quem guardo triste memória, pela forma trágica como nos deixou, foi protagonista da maior surra de todos os tempos que sofri de meu pai. Do motivo daquele castigo só o vim desconfiar já adulto, por dedução e depois de muitas tentativas, de tantas conjeturas que fiz na busca do que poderia ter acontecido em sala de aula, a ponto de me fazer sofrer o que sofri.
Tudo começou com um exercício de grafia, onde dona Hilda nos pedia para escrever em nossos cadernos dezenas de coisas: dez cadernos, dez bolas, dez bois, etc. Dentre meus exemplos, escrevi “dez patas”, e foi neste exemplo, creio, que o bicho pegou. O primeiro “a” de “patas” deve ter ficado meio aberto, e a exigente mestra viu ali um palavrão, um ato imperdoável que deveria ser levado incontinenti ao conhecimento de meus pais para o corretivo urgente e necessário. Fez a professora um bilhete e o entregou a minha irmã. Tímido e leso não questionei a bronca e o bilhete, e fiquei à mercê dos acontecimentos iminentes e com certeza desapiedados, sobretudo dependendo das mãos sobre as quais cairia o recado da professora.
Chegados a nossa casa, minha irmã, com o bilhete na mão, procurou por minha mãe, mas meu dia não era mesmo de sorte e dona Otília não estava lá, o que era raro acontecer. O tal manuscrito foi entregue, por segunda e última opção, a meu pai, que lá se encontrava, coisa também rara de se dar. Seus olhos faiscaram após a leitura que fez do que escrevera dona Hilda; um de seus pesados chinelos passou-lhe do pé à mão direita, com a esquerda espalmou minhas frágeis mãos e os “bolos” se sucederam um após outro, em revezamento, ora na mão esquerda, ora na direita, até fazê-las vermelhas e ardidas. Da copa, ambiente da primeira sessão do castigo, fui levado para a sala de estar. Voltado para a porta de entrada da casa, fui posto de joelhos e com os braços abertos. Era uma quarta-feira e as pessoas que chegavam, moradores ou não do sítio, vizinhos e não vizinhos, todos se impactavam com aquele quadro, olhavam sem entender para aquela criança de joelhos e de braços em cruz. Meu constrangimento era medonho, doía-me na alma tanto quanto o fizeram-me as lapadas do chinelo. Meu pai sentou-se num banquinho ao lado, e me xingava, e me chamava disso e daquilo... O diabo! Passado um tempo, se levantava, torcia-me com vigor a orelha esquerda e ia até à cozinha; no instante seguinte, voltava e batia com os dedos dobrados em minha cabeça, o conhecido “cocorote”, e essa duplicidade de atos meu pai a repetiu pela tarde afora, indiferente ao espetáculo que aquilo representava aos que chegavam, familiares ou não, e ao meu estado de exaustão pela aspereza e extensão do castigo. Cruz credo!
CASO II
Aposentou-se dona Hilda e foi substituída por dona Nina, que me parecia ter lá seus quarenta e cinco a cinquenta anos de vida. Era boa gente, não tinha o estilo disciplinador de sua antecessora e interagia amistosamente com os alunos. À tarde, ela lecionava em outra escola, na mesma rua e distante coisa de trezentos metros. Passado algum tempo, entendeu dona Nina de me convidar para auxiliá-la no período da tarde, alegando que precisava de alguém para copiar-lhe os resumos de suas aulas, que chamávamos de “pontos”, e eu tinha, disse-me, a letra boa (aff!).
Dada a minha idade, creio que coisa de treze anos, fazia-se necessário pedir a autorização de minha mãe. Ela foi até minha casa e fez o pedido. Minha mãe adorou a idéia, e me disse: Vá, meu filho, porque enquanto ajuda à professora você também aprende. Só não me disse, mas lhe deve ter passado pela cabeça, que aquela ocupação vespertina me afastaria do futebol e das “más companhias”, comuns aos garotos de minha idade e que mexem com os miolos dos pais. O que não imaginava minha mãe, e muito menos eu, é que dona Nina tinha outros propósitos em mente. Então lá ia eu, todas as tardes, para a outra escola copiar pontos e “aperfeiçoar meus embrionários aprendizados”. Sentava-me à mesa com a professora, ela de frente para seus alunos, naturalmente, e eu à sua esquerda, na cabeceira de sua mesa, copiando os tais resumos. Passados poucos dias daquele trabalho conjunto, eis que me dou conta de que a velha mestra me fazia com sua mão esquerda carícias em minha coxa direita. Naquela época os meninos usavam calça curta. Ela fazia aquilo indiferente à real possibilidade de ser vista naquela intimidade pelos seus alunos sentados à sua frente. Sempre que olhava pra ela, como a inquiri-la da razão daquilo, via-a com os olhos postos sobre mim, de um modo que hoje eu chamaria de “libidinoso”, ou de peixe morto, vá. Diante daquela situação, meu estado de espírito era de fazer dó e eu sequer tinha coragem de esboçar qualquer gesto de repúdio, de tomar qualquer atitude de defesa. Visto isso, eu ia de má vontade “cooperar” com ela e por ela ser assediado, postos frente a frente um bruguelo de treze anos e uma mulher de no mínimo quarenta e cinco, ela separada do marido e mãe de uma menina pouco mais nova que eu. Apesar das desavergonhadas atitudes daquela megera, faltava-me ânimo para falar em casa sobre aquelas coisas medonhas, numa época em que eu nunca ouvira falar em pedofilia e no tempo em que se tinha das professoras exemplos de ética e de moral, sendo cada uma delas a extensão do hábito disciplinador de nossos pais e fonte de saber.
Numa daquelas tardes, levou-me dona Nina pela mão até uma sala adjacente ao salão escolar, ergueu meu queixo e me aplicou um beijo na boca. Eu não sabia como reagir àquilo, fiquei abestalhado, era ingênuo e tímido demais, e este estado de coisas perdurou até que ela se mudou para o Rio de Janeiro. Aleluia!

CASO III
No ano escolar seguinte, minha mãe matriculou-me no Ginásio Municipal, então a melhor escola da cidade, bonita e gratuita, se se pode chamar de gratuito algo que se consegue às custas de pesados e compulsórios impostos. No corpo discente, viam-se os filhos da elite local dividindo assentos com os menos favorecidos, porque afinal ali estava o grau maior da escala do saber disponível naquele município. No docente, os grandes mestres de Latim, Francês, Inglês, etc, e dentre os tais o de maior domínio da língua portuguesa que já conheci. Os estudos além do Curso Ginasial teriam que ser buscados em cidades de maior porte ou na capital, restritos, claro, àqueles de maior renda.
Pois bem, o fato concreto é que fui matriculado, um novo ano letivo se aproximava, mas, como diria Noel Rosa, com que roupa eu iria às aulas? Com que indumentária vestir-me-ia minha mãe se não tinha à mão outra renda além daquele minguado dinheirinho miúdo entregue por meu pai, então já separado de minha mãe, e que mal permitia nossa sobrevivência? Era uma questão difícil de resolver! Sem alternativa mais satisfatória, se levado em conta o perfil indumentário com o qual eu teria que me adequar, que me aproximasse, pelo menos, ao uniforme de uso dos outros alunos, a saída foi apertar ainda mais o cinto e comprar um tecido ao prestamista, aquele do tempo da cadernetinha que ia de porta em porta até à casa do cliente para receber as faturas acordadas. Então se comprou um tecido chamado oracebo, um pano que não conheci antes nem deopois, que de tão ruim não se lhe conseguia dar vinco, e de cor difícil de definir. A confecção, a fez uma costureira da rua, quase vizinha e muito íntima da gente, possivelmente sem cobrar pelo serviço. Mas de fato não havia goma nem ferro quente que lhe desse melhor alinho.
Faltava ainda o que pôr nos pés; o dinheiro não dava para tanto, para atender a mais essa necessidade, nem a escola me aceitaria de chinelo ou de pés no chão. Mas dessa me livrou um parceiro de futebol, das peladas com bolas de meia ou de borracha, morador da mesma rua, à época aprendiz da arte de sapateiro. Num gesto de boa vontade, pegou meu amigo das brochas, martelo, couro, pedaços de pneu velho e fez-me um par de alpargatas (então mais conhecida como alpercatas), alguma coisa de certo modo, convenhamos, personalizada, conquanto sem alguma semelhança com os calçados disponíveis nas lojas calçadeiras. Era um modelo único, só meu, pensado apenas para meus pés. Estava eu, assim, vestido e calçado, de calça nova, posto que bufenta, sem pés no chão, e agora era aguardar o início das aulas.
Quando esse dia chegou, lá fui eu caminho afora, com aquela calça fofa e os pés metidos naquela “obra prima” manufaturada pelo aprendiz de sapateiro, credor até hoje de meus agradecimentos pelo gesto altruísta e despido de outra pretensão que não a de viabilizar minha continuidade nos estudos. A matéria não valia muito, mas o favor era impagável.
O ginásio era no centro da cidade, de frente à Prefeitura e desta separado por um vão, através do qual passava o trem, na época o principal meio de transporte entre o interior agrestino e a capital, cujo apito servia até de relógio. – Piuiiii, olhe o apito do trem, são sete horas! Ligando os dois lados da linha do trem havia – e ainda há - um pontilhão, através do qual deixávamos a rua da Prefeitura e chegávamos ao Ginásio. Tangenciando as calçadas de ambas as ruas paralelas, a da Prefeitura e a do Ginásio, havia um muro contínuo e baixo, chamado cais talvez porque ficasse às margens da ferrovia, que nos servia de assento e ponto de encontro enquanto esperávamos o início das aulas. Sobre o cais da frente do Ginásio, lá estavam os alunos em grande número, um grupinho aqui, outro ali, todos metidos em seus uniformes: As moças vestidas de saia azul marinho pregueada e blusa branca; os rapazes, de camisa e calça caque, esta com uma fita azul de cada lado. Eram uniformes de fato bonitos e em si mesmos elementos de distinção entre aquela unidade de ensino e as demais escolas da cidade.
Ao vislumbrar aquele quadro, escolhi não atravessar o pontilhão e me inserir naquela massa estudantil posta do lado de lá. Como diria Graciliano Ramos, eu estava encalacrado. Meu perfil fazia-me diferente pelo que me vestia e me calçava. Sentei-me à frente da sede do Poder Executivo e pus-me a matutar sobre a correlação entre mim e meus futuros colegas. Entreguei-me àquela observação minuciosa, afeito aos detalhes que deles me distinguiam pela vestimenta, e assim fiquei até a sineta tocar e os estudantes adentrarem ao Ginásio, escada acima. Minha decisão foi pela volta para casa, sair de fininho, feito cachorro magro, deixando para trás o Ginásio e o resto. Sob o espanto de minha mãe, ao me ver regressar tão cedo, respondi com uma desculpa qualquer e ela felizmente condescendeu.
No dia seguinte a história se repetiu, de novo não resisti às comparações e aquele dilema me empurrou pelo caminho da volta, cabisbaixo, chutando latas, embezerrado, preocupado com minha nova desculpa e com o que iria acontecer em casa.
A desculpa reprisada na minha segunda falta às aulas não funcionou, soou esfarrapada e improcedente, sem chance de justificativa, e ouvi de minha mãe, com todas as letras: - Ou você entra naquela escola ou subo aquela escada com você pelas orelhas!
Naquele momento me vi sem escolha, porque logo um anjo qualquer me segredou que levado pelas orelhas escada acima eu ira chamar mais a atenção do que se escolhesse enfrentar a turba com minha calça de oracebo e minhas alpercatas fabricadas pelas mãos ainda inseguras de meu amigo. Não havia plano B ou C, restava-me apenas aceitar a situação, vencer o medo da galhofa e subir os degraus do pomposo educandário com as orelhas fora das mãos de dona Otília, que me queria intelectualmente preparado, e sem nenhuma disposição para deixar fora dos objetivos o dinheiro gasto comigo, a duras penas. Fui!
Fui e me dei bem. Ganhei amigos, enturmei-me, alcancei vestir-me igual, ali vivi momentos que marcaram minha vida. E a expressão “subo aquela escada com você pelas orelhas”, tenho hoje como sábia, proferida por quem realmente se incomodava comigo. Foi uma atitude de amor. Foi o desabrochar de alguém que não tinha nada para alguém mais preparado para caminhar com outro calçado, a capacidade de interagir com o mundo e com as pessoas; com outra roupa, a do saber, insipiente embora, mas asas para voar sonhos mais altos, quiçá alcançáveis pelo esforça e com as ferramentas que me eram entregues a cada aula. Dos projetos utópicos fui pouco a pouco passando aos possíveis; do fantasma do nada me vi caminhando na direção de alguma coisa; das comparações que me amesquinhavam passei às que me faziam igual.
Ainda era cedo para compreender no todo a “ameaça” de minha mãe. Seria necessária a sabedoria dos adultos para alcançar a medida exata daquele gesto materno, que hoje entendo como um divisor de águas, a separação de uma infância sem nada para um horizonte mais promissor e alcançável. O descer dos degraus daquela escola seria no final para caminhar na direção de outro mundo, na busca de outras conquistas, então mais palpáveis, sem, contudo, tirar os pés do passado e a memória de quem me vestiu e me calçou para os primeiros passos. Descobri que o que trazemos no corpo e sob os pés pouco tem a ver com o que temos na cabeça, na alma e no coração, ainda que a sociedade tenha lá seus paradigmas e confunda, muitas vezes, o verdadeiro com o aparente. Venci!

Nenhum comentário:

Postar um comentário