segunda-feira, 7 de março de 2011

SONHOS DE UM PRETENSIOSO

Essa coisa de pobreza nunca encontrou guarida no painel de meus valores. Não a pobreza em si mesma, nada disso, mas a pobreza enquanto limitante da realização de sonhos, projetos, ou a que nos amesquinha ante as necessidades de cada dia, nossas e do próximo, que cria estratos sociais diversos, sendo nós iguais quanto à espécie e aos olhos da Natureza. Se seremos os mesmos no silêncio da morte, por que não o somos já, agora, no barulho do atual estágio existencial? Se de igual valia nos servirá a tumba fria e escura, que nos fará idênticos, por que não somos iguais agora, se de idêntico modo derramam-se sobre nós o calor e a claridade do mesmo Sol?
Ainda menino, uma professora me chamou de pretensioso. Chamava-se Sílvia, dona Sílvia, e não ia com a cor de meus olhos, tanto que me expulsou de sua sala, e quase do colégio, só porque sugeri um quociente errado em sua aula de divisão. Ora, eu estava apenas engatinhando no universo dos números. Agora não, agora já sei que sete divididos por dois é igual a três, noves fora ela.
Bom, “pretensioso” vem de pretender, mas à época passei batido, não alcancei o que ela quis dizer com isso. A idéia, com certeza, da qual só muito mais tarde vim me dar conta, era de que eu, aos seus olhos, seus e provavelmente de outros, comportava-me como um metido, alguém que se insinuava descabidamente acima de sua realidade. Alguma sabedoria se revelara naquela observação docente, pois no fundo eu, ainda que sem essa pretensão, haveria de exteriorizar desde cedo aquilo que só mais tarde ser-me-ia possível entender.
O começo disso tudo talvez e provavelmente esteja no fato de que eu era um pobre rico, ou um rico pobre. Um rico, sim, porque meu pai era dono de trezentos hectares de terra, com engenho e muitas árvores, lavoura de café e muitas bananeiras, mas confessava-me não ter dinheiro quando eu lhe pedia um caderno para levar à escola. Essa contradição que o destino me impunha, um rico sem caderno, ou sem caderno embora rico, deve ter feito minha cabeça e moldado meu caráter. Daí até ser chamado de pretensioso foi um pulo, que o digam as professoras da vida e os psicólogos de plantão. Esse tipo de pobreza, a do confronto entre o ter e o não ter, deu no que deu: Um metido a ser aquilo cuja exterioridade desaprovava, ainda que minha interioridade, que era e é inobservável, fugidia, me dissesse o contrário e fosse a raiz da árvore que pretendia dar frutos distintos daqueles prometidos por seu aparente e minguado viço.
Pobre de fato e de origem, sonhei sonhos altos, tão sem limites que nem o céu lhes servia de fronteira. Divaguei muito e por distintos modos e lugares sobre como sair da precariedade e alcançar fartura. Os caminhos foram os mais diferentes possíveis, e todos me levavam do “nada” ao “tudo”, da obscuridade à notoriedade, desde a ignorância até o domínio de muitas ciências, do falar mal a língua pátria à fluência em vários idiomas, do sem caderno à incomensurável fortuna. Esses anelos eram instrumentalizados segundo a inspiração do momento e pela insônia de quase todas as noites. Imaginei-me em mil situações, interpretei vários personagens, fui Presidente e notável empreendedor, craque de futebol e astro do cinema, cientista e pesquisador, tudo na mais alta medida, em nada alcançável pelos mortais próximos ou distantes. Eu era o cara!
Quando jogador de futebol, Pelé seria gandula ou no máximo peladeiro de fins de semana, e Maradona, engraxate de chuteiras; quando Presidente, a história do Brasil dividia-se em antes e depois de mim, chegava ao topo das nações mais desenvolvidas, com maior PIB; se astro de cinema, ganhava todos os prêmios de todas as academias; uma vez cientista ou pesquisador, o Mundo alcançava as respostas para todos seus males, inclusive a cura do câncer; se empreendedor, construía o maior conglomerado empresarial, diversificado e sem concorrentes, e fabricava carros, navios e aviões, e era dono das maiores jazidas de petróleo. Muitas vezes eu me dava o direito de ter e de ser tudo isso ao mesmo tempo.
A imprensa, daqui e de fora, me bajulava e me suplicava uma palavra, ainda que a troco de um altíssimo cachê. Mas tudo isso era burilado, pensado com meus botões, urdido na calada das noites com o fim de socorrer os pobres de coisas materiais ou de espírito, parentes ou não. Concomitantemente, eu passeava mentalmente sob os viadutos, subia os morros das favelas, entrava nas filas matutinas dos hospitais públicos, visitava as escolas do governo, destampava as panelas dos excluídos, estendia o olhar para os açudes e cisternas secas do agreste e do sertão, tangia com os vaqueiros o gado magro e sedento, jogava dama com os aposentados marginalizados, à beira dos esgotos a céu aberto brincava com as crianças barrigudas e desnutridas. E os sonhos iam assim de mãos dadas comigo por estes lugares afora, ao ritmo do constrangimento, da intolerância, do inconformismo, monitorando as miserabilidades, fazendo o senso particular e sintomático dos sem pão e sem nada, medindo a extensão e a profundidade de cada caso, como para dar aos sonhos a amplitude necessária à extinção de toda pobreza, extrema ou não, de modo que todos tivessem os cadernos de que carecessem, todas as roupas e calçados que os vestissem, a alimentação farta, saborosa e nutritiva, o lar decente e aconchegante, o acesso à educação de qualidade, a assistência médica de ponta, o completo e necessário lazer. E quando alcançava estes longínquos horizontes, eu de novo virava pobre, tornava-me de novo refém do destino, e dormia, e sonhava o sonho possível ou nenhum, até a noite próxima, quando um novo sonho tirava-me o sono e me fazia outra vez pretensioso.

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